- Fabiula Nascimento -
- 45 -
RACILVA
Após
um banho completo, seu Valdivino, já refrescado e com a barriga cheia, pois
havia almoçado, apesar de ser fora da hora, caminhou para fora do banheiro
depois de vestir a calça e a camisa além dos sapatos. E assim ainda acanhado
ele sorriu com seus poucos dentes ainda e declarou está naquela hora em plena
forma. As moças sorriram e Racilva foi a declarar ser agora seu Valdivino outro homem e não aquele de poucas horas
passadas. O homem sorriu como sem querer e, logo após procurou o seu chapéu de
massa, porém não encontrou. As jovens moças sorriram e Racilva ainda perguntou:
Racilva:
---
O senhor está sentindo falta de alguma coisa? – indagou a moça com felicidade.
Valdivino:
---
Meu chapéu. Eu coloquei em algum canto dessa sala. – disse o velho a procurar
com paciência por os demais locais.
A
gargalhada foi solda de ambas as moças. E foi Maria José a falar ter jogado no
lixo aquele trapo de chapéu.
Maria:
---
Joguei fora, ó? O senhor não tem mais chapéu. – sorriu a moça ao dizer tal
façanha.
Valdivino:
---
Mas dona! Aquele era o meu chapéu! – falou com os olhos espantados o mendigo.
Maria:
---
“Era”. Dissestes muito bem. De agora em diante o senhor não usa mais aquele
chapéu. Está aqui um novo ou quase novo. Quem vai te dar é a senhorita Racilva.
– gargalhou a moça.
Racilva:
---
Está aqui o seu novo chapéu. De agora em diante o senhor está inteiramente
limpo. – relatou a moça a entregar o chapéu de massa ao velho corcunda.
Valdivino:
---
Mas minha senhora? Por que tanto agrado? Eu não mereço! – respondeu o velho
meio a chorar.
Maria:
---
Merece! O senhor merece até muito mais. Isso
tudo é o principio. De hoje em diante o senhor deixa o passado e se volta para
o futuro. Nós veremos onde está dona Maria Clementina, então, se ela estiver
viva e com saúde vamos ter um casamento nos molde de antigamente. – sorriu a
moça ao abraçar o velho senhor.
Entre
casos havidos e resolvidos o velho sempre encabulado declarou ter sido tão bem
cuidado pelas moças como há tempos não se cuidava do pobre homem. Ele fazia
refeição em um local cuidado pelas Irmãs da Caridade, existente naquele bairro
ou pouco mais atrás. As Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo era uma
instituição vida desde o século XVII cujo principal lema era “pobreza e
obediências” conforme ditava o velho arqueado. Quando chovia ele procurava
abrigo no Convento. E quase sempre estava a tomar café de manhã, no Convento.
Almoço também era no mesmo espaço e antes de dormir cuidava de cear. Porém as
Irmãs da Caridade atravessavam terríveis dificuldades e por isso mesmo o homem
estava sem comer a dois dias. O café da manhã ele tomava em uma banca posta no
Mercado do Peixe com pedaços de pão doado por alguma pessoa. Nesse dia ele não
tomara café. Com certeza perdera a hora. E o almoço servido na casa Maria José foi uma dádiva de Céu. Esse
era o dizer de seu Valdivino.
Racilva:
---
Interessante! O senhor levou uma vida parecida com a minha. Eu não conheço o
meu pai. Há quem diga ser ele um homem de outro Estado. A minha mãe me despreza.
Eu vivo de casa para a casa de minha
avó. Ela reside há uns cinquenta metros da minha casa. Quando estou com minha
avó, eu cuido de crianças de outras pessoas. Às vezes eu vou ao interior. Eu
vivo ao léu. Inteiramente ao acaso. E por isso eu digo que temos vidas
semelhantes. – relatou Racilva.
Maria:
---
Eu até me pareço com as moças do interior. Tenho um pai. Esse cuida de bodes.
Tem uma mulher. Ele arranjou essa mulher a pedir esmolas. E a levou para a
nossa casa. Meu pai é um sargento da reserva. Mesmo assim, não dá importância.
Se tem bodes, também tem uma ou duas vacas. Esse é o nosso sustento. Quando a
criação está grande, ele vende a metade. Tem porcos. Os bichos ronronam como
podem. É uma alatomia desgraçada: Cuii, Cuii; resmungar baixo; chorinho; tocar
um nariz. Até que é engraçado o ronronar do bando. – fez ver Maria José ao cabo
de gargalhar.
Valdivino:
---
É. Mas tudo aquilo tem um sentido. Quando se pega um porco ele grita de
desespero. É como dizer: “Socorro. Socorro. Socorro”. Se eles conversam entre si, fazem o chamado:
“cuii, cuiii”. Todo grunhido de um porco tem o seu significado. O mesmo se dá
com o gato, o cão e mesmo a cabra. Quando cabra perde seu filhote. ...Perde,
que dizer: ele desaparece do bando, a cabra lança um som só por o cabrito
entendido. Eu costumava fazer o berro da cabra. Ela me olhava e dava de mão.
Não era com ela tal assunto. – destacou Valdivino a sorrir um pouco.
Racilva:
---
Engraçado! O senhor fala com os animais? – indagou preocupada a moça.
Valdivino:
---
Eu sei o que eles “falam”. E eles entendem o que eu digo. Galo, galinha, vacas,
e outros animais do sertão. Quando um leão geme com dor, o homem vem e trata do
ferimento. Ele sente a necessidade de
reconhecer o feito com o passar do tempo. E nunca se esquece do tratamento dado
pelo homem. Você já ouviu a história de Ândrocles e o Leão? – quis saber o
valho.
Racilva:
---
Não! – respondeu a moça com certa curiosidade.
Valdivino:
---
É uma história real. Um homem encontrou um leão ferido. O animal apenas gemia
de dor. Ele procurou o ferimento e o tratou. O animal viveu com ele certo
tempo. Um dia o homem foi aprisionado, por que era escravo fugitivo, e levado
perante o Imperador. Esse o sentenciou a morte. Quando Ândrocles foi levado
para a arena, os guardas soltaram um leão. Esse se aproximou de Ândrocles e o
beijou com afago. O animal reconhecera o homem que lhe salvou a vida. Ao ouvir
esse relato tão sublime, o Imperador perdoou o escravo e o deixou ir com o leão
– contou o velho essa história a mocinha com a sua voz lenta e rouca.
Racilva
sorriu e depois caiu em prantos. Ela chorava como alguém que perde o seu ente
mais amado querido. Valdivino olhou Racilva com terna afinidade e não disse mais nada. Apenas se lembrou de
Ândrocles e o Leão. O bando de pombos passou novamente em revoada por sobre a
casa e foi para o lado oeste. O movimento era pouco intenso na rua onde morava
a moça Ivete. Ela morrera afogada. Seu corpo estava ainda no necrotério da
Polícia a espera do laudo médico. Dona Socorro acordou àquela hora tardia da
manhã e Maria José, de imediato foi vê-la para cuidar de suas plenas
necessidades do dia. O velho Valdivino passou para a sala de entrada em
companhia da moça Racilva. Esse estava ainda suspirando pela história ouvida do
senhor do nada. Quando home terminou de passar pelo quarto de dona Socorro, a
moça saiu com ela para o banheiro onde faria asseio diurno da mulher. Dona
Socorro dobrou a cabeça para olhar o homem e logo perguntou com surpresa a
Maria José como se tivesse despertado de um longo sono.
Socorro:
---
É Valdivino? – indagou com surpresa.
Ela
apontava o dedo indicador da mão direita enquanto caminhava lentamente, segura
pelos ombros por sua auxiliar. A mulher ficou surpresa e pergunto a Socorro
para ter certeza do dito pela senhora. Afinal há muito tempo Socorro não tinha
visto o homem. E além do mais, com sua memoria pouco criativa até por isso era
demais a mulher reconhecer uma pessoa do distante interior. E Maria José
indagou com maior surpresa.
Maria:
---
A senhora conhece o homem? – indagou com rapaz a moça.
Socorro:
---
Ele cantava muito no Saco da Imburana quando a noiva não vinha conversar com
ele. Modinhas de antigamente. – falou a mulher com plena lucidez.
Maria:
---
Mas como a senhora o reconheceu? – indagou perplexa a moça.
Socorro:
---
Quem não conhece? E essa menina é filha dele? – esquadrinhou a mulher à entrada
do banheiro.
Maria:
---
Não. Sei lá! Eu acho que não. Ela não falou! – respondeu Maria pesquisando em
sua memoria de onde teria vindo a nova companheira de conversa.
A
mulher sorriu piedosamente.
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