- Kassandra Marr -
- 22 -
O velho estava triste com os seus pensamentos vagando pelas sombras das estrelas aonde o ocaso não mais chegaria. Ele era todo a cismar. Temia por que tantos sonhos lhe inquietavam sobremaneira de vez em quando. Um dia era ele um cavaleiro. No outro, um mendigo. Em alguns tempos um rei. E sempre aqueles sonhos a divagar pela sua precária natureza onde o velho apenas sabia o sofrer daqueles dias de mendigo. O velho nunca fora a um cinema ou não teria visto cenas em revistas. Aquele amargor profundo era o que ainda mais o inquietava. Era um tempo distante e ele teria que ir guerrear com a sua legião. Duas moças bem jovens ainda se abraçaram a ele que não era tão velho. Ele as tratava com carinho enquanto os arqueiros o olhavam com severidade. O tempo bramia para ele com a partida a qualquer hora. Era verão. Ou primavera. Ele não sabia ao certo. Os montes eram tudo que se avistava. Os guerreiros impacientes. Todos queriam partir para a batalha. Uma longa distancia. Os arqueiros armados de lanças, espadas, arcos e flechas. Alguns guardavam uma faca por entre a bota no final da perna. Eles estavam intranqüilos com o adeus do comandante Euclides. As filhas de Euclides choravam de comoção. A mulher dele também fazia em prantos. Tudo era horror.
--- Com você era chamado pelos companheiros? – indagou Silas tão de repente.
--- Comandante. Chefe. Coisa assim. – respondeu o velho Molambo.
--- E você o que fazia com eles? Quero dizer: na campanha? – perguntou Silas curioso.
--- Não sei muito bem. Eu era o chefe. Quer dizer, eu era alguém que se fazia de chefe. Ou era o chefe mesmo. – respondeu o velho.
--- Eu me lembro do que o médium disse naquela ocasião. Era que a moça que disse ser tua filha respondeu que você se chamava de Euclides. – argumentou Silas preocupado.
--- É. Mas tenho outros sonhos em que era um Rei. – respondeu o velho.
--- Estranho isso. Muito estranho mesmo. – respondeu Silas preocupado.
--- E o senhor não tem sonhos? – indagou o velho Molambo.
--- Eu? Tenho! Mas quase não me lembro do que eu sonho. – sorriu furtivo o moço Silas.
--- Eu tenho pesadelos. Acordo sobressaltado. – falou o velho.
--- Agora, eu me lembro de um sonho que eu tive há alguns dias. Eu caminhava por uma rua. Ao lado tinha um teatro. Na metade da rua, o teatro tinha uma porta. Eu entrava por essa porta. Tinha meninas ensaiando uma peça. Depois caminhei através do estranho teatro. E encontrava um piano. E encostado ao piano estavam vários atores e atrizes. E eu dizia ao grupo que no tempo de Racine o teatro era lotado. Só isso. – respondeu a Silas de uma forma preocupada.
--- E quem é esse tal Racine? – indagou o velho.
--- Não sei. Teve Racine que era um mestre do teatro moderno antigamente. – respondeu Silas preocupado.
O velho Molambo baixou a cabeça para pensar como fazia nos tempos de mendicância. Ele era um homem extremamente triste o poucas vezes se ouvia sorrir. E ao pensar na sua filha dileta de muitos séculos passados, ele ainda ficou mais triste. Silas o observou. O velho parecia querer chorar. Via-se em seu rosto uma lágrima talvez de saudade. De momento ele se lembrou de batalhas sangrentas e terríveis onde seus homens guerreavam com arcos, flechas, espadas, lâminas de aço. Era a vontade de querer combater até a morte. Molambo viu as suas duas filhas no alto da colina a torcer pelo seu pai, Euclides, o líder da aldeia. Então, as belas mocinhas apenas gritavam a saudação da vitória:
--- Ai meu pai! – diziam isso por varias vezes até o conflito terminar.
Então, de volta a aldeia, Euclides pegou as duas filhas e montou-as na garupa do seu cavalo e caminhou para a aldeia. Os mortos já começavam a se erguer e sair pelo caminho dos falecidos todos eles de cabeça baixa a lamentar.
--- Isso foi roubo. – dizia um.
--- Covardia. – outro respondia.
--- Ah se eu pego eles! – respondia alguém.
--- Vamos pelo caminho dos falecidos que é bem melhor. – outro argumentava.
Uma música suave envolvia a todos os sobreviventes. Era o toque harmonioso feito pelo bardo do grupo seguindo também os seus companheiros. As mocinhas na garupa do cavalo apenas sorriam. E Euclides, o chefe da aldeia, depois de grande luta, extenuado, seguia calado o seu caminho das ilusões perdidas. Era já quase noite quando os lanceiros chegaram às pousadas. Eles estavam então exaustos de tanta luta.
Toda essa cena voltou a atormentar a memória de Euclides. E de imediato, revolveu para a memória de Molambo. Ele como Molambo ou Diomedes, se abriu em prantos tardios e quase infindos no meio do gabinete de Silas, o seu chefe ou patrão.
Ao meio da tarde, Vera Muniz conclamou o motorista que dirigia o carro da empresa para ele fazer uma experiência com o seu novo companheiro de trabalho, o velho Diomedes. Esse respondeu de acordo e chamou Diomedes para saírem até um local sem trânsito onde os dois podiam fazer teste de aptidão. O local era a praia onde poucos carros trafegavam, pois ali o trânsito era mais freqüente aos sábados e domingos. Nos dias de semana era bastante fraco. E ambos foram à praia para ver o que Diomedes ainda sabia fazer no passar de marcha e outros problemas que o veículo podia apresentar. E foi assim que Diomedes seguiu firme e confiante a orientação de seu colega de direção. Lá para as tantas Diomedes declarou que fazia muito tempo ter dirigido caminhão. E esse caminhão era um tanto velho. O carro não passava a segunda marcha e se passasse, era um problema para desmanchar. Não raro tinha que parar o velho caminhão para retirar a marcha engatada. O companheiro de aventura soltou uma bela gargalhada e, quanto mais ouvia a narrativa de Diomedes, mais morria de sorrir.
--- É verdade. O carro era um caco. – disse Diomedes muito sério para o colega de direção.
--- Eu sei que é. Já ouvi muita historia dessa natureza. – sorriu Oscar ao responder a Diomedes.
--- E esse não foi o único. Eu dirigi um carro que não tinha marcha à ré, não tinha freios, não tinha arranco, não tinha luz e não tinha buzina. Certa vez, eu seguia por uma estrada de ladeira onde eu teria que dobrar na próxima esquina à direita. Não contei conversa: passei em frente, pois o carro não tinha freio. Rodei um bocado para encontrar uma rua onde dobrei a direita e fui em frente. Um companheiro que viajava comigo comentou:
--- Por que você não dobrou mais atrás? – indagou o companheiro do motorista Diomedes.
--- O carro não tem freio. E não tem buzina. E não tem arranco, e não tem luz. Para acabar, salta da segunda marcha. – respondeu Diomedes para o companheiro de viagem.
--- Voltes! Eu vou saltar aqui. Se escapei até aqui é melhor eu ficar aqui mesmo. – respondeu o viajante amedrontado.
--- Nada! Você vai até na sua casa. Foi esse o combinado. – respondeu Diomedes.
E assim, foi o que disse o companheiro de primeira aula para o histórico motorista. Esse caiu na gargalhada que não podia nem mais dirigir o seu veículo. O certo foi que o motorista Oscar estacionou seu carro no meio-fio da calçada da praia para ver se terminava do gargalhar com tanta história.
--- E tem mais. Quer outra? – perguntou Diomedes a Oscar.
--- Não. Está bom. – dizia Oscar a Diomedes ainda gargalhando.
--- Certa vez eu vinha com um carro todo em mão de aparelho: branco, amarelo, cinza, azul. Verde, marrom. Tudo que era tinta o carro tinha. Um guarda, desse de estrada, mandou parar o veículo. E veio me dizer:
--- Desse jeito o carro não pode andar. – disse o guarda conferido às corres.
--- E por que não pode? Tem pneus, tem marcha, tem freios, tem arranco, tem luz. E por que não pode andar. – respondeu Diomedes ao guarda.
--- Ninguém sabe qual a cor do carro. – respondeu o guarda molhado de suor.
Nisso, cruzou um caminhão que não tinha nada do que o guarda reclamava do carro de Diomedes. Nem capu do motor. Nem à frente, nem farol, nem banco de motorista, nem pára-brisa, nem nada. Então Diomedes reparou no caminhão que cruzava com o seu e disse ao guarda:
--- E aquele como é que pode trafegar? – indagou Diomedes ao guarda.
E esse não contou conversa. De apito da boca saiu atrás do motorista do cambão para ver, se pelo menos, o veículo tinha ainda documentação em dias. Nesse ponto Diomedes seguiu viagem com o seu carro dando adeus para o guarda que, aquela altura, nem sabia o porquê havia parado o carro de Diomedes e estava a pedir a documentação daquela catrevagem.
--- Não tem seu guarda. Isso é um carro velho. – respondeu o motorista ao guarda de estrada.
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