sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O SENHOR DE LUTO - Vinte e Sete -



CARRAPICHO

O domingo chegou mais triste com o Céu coberto com o negro véu do desamor e a terra inteira toda muda. Não havia pássaros canoros a gorjear como se tudo estivesse a enlutar a face oculta do destino. A Matriz de Nossa Senhora da Apresentação estava aberta logo cedo, mas não havia viva alma para rezar pelo descanso eterno de Manoel Carrapicho, antigo e tenaz bandoleiro, fazedor de mortes. Ele e o sanguinário Lampião, o rei, o cangaceiro, o matador de gente. Carrapicho não temia o destino como Lampião, o misterioso, caído morto em 1938. Carrapicho viveu um pouco mais até encontrar a sua fatalidade nas mãos cruéis do celerado Tororomba. Um tiro no olho e morte certa. O advogado Edgar Penteado chegou logo cedo em sua fazenda, levando a sua mãe, Ana Amélia, protetora de Carrapicho, e a doméstica Nair Pereira, ajudante da anciã. Logo atrás em seu veículo os demais integrantes da família. Apesar de não haver chuva naquela hora em toda a região, o Céu permanecia carrancudo. A urna mortuária já estava na sala principal da fazenda aos cuidados de dona Deodora, mulher do homem morto. Na sala havia cadeiras para quem quisesse sentar. Os empregados da fazenda apenas murmuravam sobre a infausta tragédia ocorrida. Os dois veículos chegaram manhã cedo trazendo toda a família. Deodora estava solitária e chorosa a lembrar dos dias vividos pelo casal, atravessando mata, percorrendo trilhas, cuidando da caça do mato para poder comer. Era a lida do malsinado sertanejo. A menina Ana Julia chegou ao mundo pelas mãos do seu pai, Manoel Carrapicho. Foi um tempo severo onde não se tinha quase nada para comer no sertão da Paraíba. Carrapicho era o único mortal na região do sertão ardente, onde trincheira de arvores cobria a terra. Dias difíceis àqueles vindos depois de 1938. Nambu era caça rara na mata. Deodora teve a filha como gado tem os burregos. Carrapicho fez com as folhas do mato a proteção para a sua mulher. Vida difícil aquela dos embrenhados do sertão do mal querer. Buscar água sem ter açude, riacho ou até poça de lama. Apanhar ovos de algum pássaro. Qualquer um. Sol fervendo ao meio dia e até à tarde. Entrar de mato adentro onde ninguém conhecia viva alma. Buscar tatu na toca. Era tudo um sacrifício cruel. Enfim, Carrapicho teve lembrança de alguém. E pé no mato, pé no caminho, ele teve o destino marcado pela sorte onde todos não acharam de ter. Enfim, depois de muitas semanas estavam o beradeiro, a mulher e a menina recém-nascida na casa grande do coronel.

Carrapicho:

--- Coronel. Boa tarde. – disse ele com a mão no busto pegando seu chapéu.

Coronel:

--- Quem é você? – perguntou-lhe o coronel Penteado.

Carrapicho:

--- O senhor não se lembra de mim porque eu não me lembro do senhor. Mas uma vez, o capitão Virgulino me disse nunca tocar da fazenda do Coronel Penteado, pois o capitão tinha boa fé do senhor. – relembrou o matuto.

Coronel:

--- Virgulino está morto! E o senhor que faz por aqui? – perguntou caprichoso e desconfiado.

Carrapicho:

--- Procuro um cantinho para me agasalhar. Eu, a minha mulher e a nossa filha recém-nascida. – respondeu o homem do modo pacato.

Coronel.

--- E por que eu vou dar comida ao senhor? – indagou zangado o coronel.

Amélia:

--- Deixa me ver a menina! Homem besta! (olhou Ana Amélia para o seu marido). Que belezura de criança! Pois eu dou abrigo ao senhor! Pode se acercar! A casa é vossa! Venha! Por aqui! Vamos pra dentro! Ora! Que homem mal agradecido! – e dona Ana Amélia virou as costas para o coronel adentrando em seu casarão

Esse foi o que se formou no primeiro encontro de Carrapicho e o Coronel Penteado. Dai por diante, Carrapicho mostrou ser pau pra toda obra e teve o caminho aberto para a fazenda a tomar conta do gado. A mulher, Deodora, mostrou saber fazer queijo e comidas de todo o tipo para os rancheiros e a família do Coronel. Assim, a vida se transformou para o beradeiro, matador dos inimigos da Fazenda Dois Irmãos. Fazia chuva ou verão, Carrapicho estava sempre atento. Certa vez alguém de amizade próxima, disse-lhe a murmurar:

Alguém:

--- Você não medo que te pegue? – perguntou a pessoa.

Carrapicho:

--- Quer saber a verdade? Cadeia foi feita para quem tem medo. Não pra mim! – respondeu.

Com isso, Carrapicho mostrava ser homem para qualquer coisa, menos para ficar engaiolado. Ele era homem do sertão, conhecedor do bem e do mal. Certa vez – ele contava essa história – viu um magote de gente a caminhar à noite pelo sertão deserto. Era noite sem lua. E escura de meter dedo no olho. Ele ficou a observar os passantes até os beradeiro se encobrirem na mata densa. Quando clareou, Carrapicho procurou as marcas dos tropeiros e nada encontrou. Ele contava essa história sem ter medo algum. Caçador de tatu pepa ou bola, Carrapicho passava a noite inteira a buscar local para pegar o peba. Às vezes era noite densa. Em outra, tinha clarão da lua. Para ele tudo era uma coisa só. Quando tinha lampião de carbureto, até que estava bem. Do contrario caçava de qualquer jeito. Com ou sem cão de caça. Ele se amoitava para matar uma cascavel. Só atirava uma vez. A serpente seguia o projétil e era morte na certa. A cascavel morria pela boca.

Carrapicho:

--- Vida de cangaceiro é vida dura, seu moço! – dizia o homem.

De outra feita, ele contava histórias por ele vividas quando estava na caatinga. Certo dia, ele estava amoitado num canto de mato quando olhou por via das duvidas surgir um homem nem gordo nem magro. Carrapicho viu o homem quando esse vinha ainda longe. Ele ficou amoitado esperando alguma ação. Mas não houve. O homem se acercou perto de onde Carrapicho estava e pediu fogo para acender seu cachimbo. O caçador de peba deu-lhe uma brasa em fogo para o homem. Esse colocou a brasa em cima do seu pé e Carrapicho só fez olhar. Com o tempo, o homem tocou fogo no cachimbo e agradeceu a Carrapicho pela oferta dada. E logo que fumou, foi embora sem dizer coisa alguma. E então Carrapicho ficou cismado ter sido aquele o “tinhoso”, o “demo”, o Satanás.

O féretro se deu no cemitério da própria família em um alto do descampado. Dona Ana Amélia era toda coberta de luto assim como o seu filho, Edgar. Os demais da família vestiam cinza. Nair também vestia luto, traje arranjado no casarão de Petrópolis. Um silêncio penoso e mortal se fazia presente. A urna mortuária fora levada pelos dois cunhados, Edgar e França, e outros dois companheiro da lida de Carrapicho. Era um ambiente solitário onde tudo emudecia. A esposa do morto seguia com o seu semblante entristecido assim como os demais circunstantes. As aves daninhas eram silenciosas como a esperar a última pá de cal a cobrir a sepultura. Entre o silencio soturno ouviu-se uma musica dorida tocada por um realejo de um alguém a estar a espera da urna descer à inevitável terra. A menina Ana Julia acompanhava o féretro com os seus olhos marejados. E  a certa altura indagou.:

Ana Julia:

--- Ele vai para o céu, minha mãe?.  – quis saber a menina

Deodora, recolhida em seu silencio, apenas respondeu como sem querer.

Deodora:

--- Já está no Céu, minha filha. – relatou contemplativa a mulher.

O ribombar de um trovão se fez presentes como se aquele fosse o último suspiro da morte negra a socorrer os seus entes queridos. Com um pouco de tempo veio à chuva. A copiosa chuva a enlutar todos os presentes no sepultamento do homem. A urna fechada desceu ao encontro do chão para o seu descanso eterno. As aves daninhas sobrevoaram para longe em busca de maior proteção para o seu agasalho. Nenhuma prece, nenhum sermão, nenhuma oração. Apenas o luto mortal. Um grupo desconhecido, talvez o restante dos cangaceiros, era a ultima figura de fora. Homens rudes como a pantera, trajando vestimenta de vaqueiros. Eram os últimos dos jagunços a trotar pelo invernado sertão. Ao longe, alguém soltou um brado de guerra em favor de Manoel Carrapicho.

A noite chegara com relâmpagos e trovões em toda a Capital. Nesse instante, Edgar Penteado convidou a jovem Nair Pereira para os dois conversarem a sós em seu escritório na casa da Avenida Getúlio Vargas. O dia passou nervoso depois do sepultamento de Carrapicho. Dona Amélia convidou a mulher Deodora e a sua filha Ana Julia para ficar uns tempos com a senhora, também na casa grande de Petrópolis. França estava de licença por conta do avistamento de uma porção de aeronaves inexistentes. Com isso havia um clima de mudez no amplo solar. Em sua conversa com a jovem moça, o senhor Edgar quis saber um pouco mais da mulher do dia seguinte. E Nair conversou:

Nair:

--- É uma boa moça. Odiléia trabalhou em várias casas. Às vezes em uma. Outras em algum canto. Eu a convidei porque o senhor mandou buscar outra pessoa para cuidar do fogo. – relatou a jovem.

Edgar:

--- Sei. Sei. Mas eu queria apenas saber. Tem mais uma coisa: eu pedi para sair do Hotel. Eu vou buscar os meus petrechos e volto para casa. Achei melhor assim. – falou com voz branda.

Nair:

--- Mas não tem nada a ver comigo! – indagou respondendo.

Edgar.

--- Não tem de certa forma. Mas, a dona do Hotel nunca me fez proposta como a que fez com você. Eu fiquei cismado. É mais por isso. E tem com você, porque nós temos que nos preparar para o futuro. O que você acha? – perguntou.

Nair:

--- O negócio do Hotel, comigo, foi primeira vez. Mas as moças que trabalham no Hotel me disseram que a mulher tem esse costume. Pega a mocinha e oferece aos melhores clientes. É essa a questão. Quando ao casório, tenho pensado. Eu sou como o senhor está vendo: uma moça de pouca cultura. Não sei nada além do meu nariz. E eu vou namorar o meu patrão? – perguntou mesmo alheia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário