terça-feira, 28 de dezembro de 2010

AMANTES - 38 -

- Paola Oliveira -
- 38 -

Na manhã daquele dia Otilia estava da cozinha da casa arrumando os materiais de comida e pondo em dia o que ela ainda não sabia direito. Vera Muniz tinha tomado café e estava àquela hora no seu quarto de descanso. Com oito meses de gravidez, Vera resolveu deixar os encargos com a sua vice-presidente, Racilva Pontes moça a qual tinha profundo afeto. Em um dia qualquer ela foi com Racilva até a praia dos Coqueiros para a moça conhecer de perto o lugar que o seu marido havia de construir uma mansão. Naquele dia, lembrava-se Vera, era tudo mato. Ou seja, cajueiros, mangueiras pitombeiras e como não podia de deixar de existir; muitos coqueiros. E além do mais, Vera indicou a casa em construção do seu Diomedes, velho que as duas conheceram ainda meninas e tinha a alcunha de Molambo.  No seu quarto de dormir, Vera sonhava com aqueles dias passados. As peraltices de Racilva em busca da praia nem tão distante, pois para se tomar banho de mar era só atravessar a estrada feita de areia e nada mais. Racilva se largou ao mar, de maré seca mostrando as pedras pontiagudas que rodeava a maré de fora a fora deixando apenas espaço para o banho de mar e, talvez, para a pescaria e o arrastão. Podiam-se ver as redes de arrasto penduradas em uma trepadeira de pau ao longo da praia naqueles dias de calor e ventania. Quem olhasse o céu, por certo teria a ver as nuvens “trancadas” anunciando que dentro em pouco instantes era tempo de chuva, acontecendo em pleno verão. Então, Racilva, no mar, gritava:
--- Vai chover Vera! Chuva! Olha! – e assim mergulhava outra vez aproveitando uma onda baixa.
E assim Racilva seguia mais para dentro do mar onde houvesse maior profundidade nas águas mansas a cada vez mais que se passava devido à maré seca. Outras moças, rapazes e meninos também estavam a nadar com franqueza. Os rapazes mostravam a sua condição de nadador afamado para a gente rica da cidade. Um dos rapazes nadava até encontrar largas ondas onde o mar bravio era mais profundo. Depois de tudo o que ele conseguiu fazer, nadou em outra direção para mais distante atingindo a praia mais para depois onde apenas tinham arrecifes.
--- Olhe ali! – gritou Vera para a moça Racilva apontando o rapaz destemido.
--- Estou mouca! Água nos ouvidos! – sorria e gritava de bem longe Racilva pulando dentro d’água para ver se desentupia o ouvido.    
Na orla, Vera sorria de ver tamanha disposição de manhã tão cedo, de Racilva a pinotear na água do mar. Logo depois, passado alguns instantes, Racilva saiu da água e veio até onde deixara Vera a tomar conta de seus pertences. Ainda estava com o ouvido entupido por força da água do mar. E pulava, pulava. Às vezes com um pé. Outras, com outro pé. E sacudia, sacudia para ver se o ouvido desentupia. E nada. Com isso, Vera sorria. E mandava ela por álcool na boca e deixar esquenta. Depois colocar um pingo no ouvido entupido.
--- E isso é bom, é? – indagava Racilva.
--- Quem já entupiu o ouvido diz que sim. – Vera salientou sorrindo.
E Racilva fez gestos com a boca, abrindo e fechado. E também fez gestos com os olhos, abrindo e fechando como quem faz careta para outra pessoa.
Essas lembranças fizeram Vera sorrir virtualmente como quem ou não queria sorrir. Ela estava só a pensar, deitada na cama de casal em seu quarto e por vezes sorriu. Caras lembranças alucinadas de tempos de outrora e nem muito outrora. A doméstica Otilia chegou de repente e indagou a Vera um negócio assim.
--- A senhora está me chamando? – pergunto Otilia meio assombrada.
--- Não. Não. Eu estava me lembrando de uns negócios. – sorriu Vera se dizer o que.
--- Ah bom. Pensei que estivesse chamando. – declarou Otília.
--- Não. Mas me dê essa revista de modas! – pediu Vera a domestica.
--- Essa? – fez ver Otilia para não confundir as revistas.
--- É essa mesma. – sorriu Vera. Após se aprumar no leito voltou ao seu modo de dormir.
A doméstica entrou para a cozinha do apartamento cantarolando baixinho uma musica bem alegre para o seu tempo. E Vera abriu a revista e olhou na página a foto de uma modelo que se parecia com alguém que um dia ela tivera oportunidade de ver também como foto abrindo uma propaganda do tempo do seu pai. E Vera se lembrou de seu avo a contar estórias remotas do tempo da II Guerra quando o velho servia ao Exército Brasileiro.
--- Foi um tempo amargo e difícil. – pronunciava o velho Muniz.
E prosseguia com a verdadeira estória do combate ao dizer que eles sempre tiveram o propósito de lutar em Pistóia, terra da Itália, sobre os escombros da sangrenta guerra. Coisa alguma estava de pé naqueles dias sombrios de nuvens terríveis onde a morte sempre passava por perto. Soldados famintos. Homens com sede. E eles nem se sabiam ao certo quem era o seu superior naquele instante. Vera ficou a meditar sobre aquele episódio soturno que o velho Muniz contava.
--- Tinha noite de densa escuridão que a gente não via nem o companheiro de perto. Certa vez eu topei com um soldado. Ele já estava morto. Parece que morreram quatrocentos e cinqüenta e seis soldados brasileiros. Foi uma coisa triste. A gente batia num soldado para ver se ainda estava vivo. Estava morto. Quase três mil feridos. Loucura! Nós lutamos em Toscana, em plena cordilheira alpina. Era um frio de matar. Período de inferno. Temperatura às vezes de 15 graus negativos. Se a gente levantava a cabeça, a bala comia. Era um terror. Os inimigos armados de canhões. A batalha de Montese foi a mais cruel. Montese foi a Monte Castelo. Em fevereiro de 1945. – falava em voz baixa, quase rouca o avô Muniz.
E Vera, ainda pequena, ouvia tudo o que o velho avô recitava em uma emoção contida pelas lágrimas de quem não abria o peito há muitos anos. O velho Muniz era calado e não falava muito. Apenas quando a sua mulher lhe chamava para tomar café. Ele, arcando com os anos, ele rastejava da sala de visita até a sala de jantar, em uma casa velha de paredes grossas, tijolos largos e batentes nem muito baixos. O velho Muniz passava por dois quartos da casa, sempre abertos e dali alcançava a sala de jantar onde com muito esforço se sentava em uma cadeira feita de madeira envergada com escoras e assento de palha. Quando notou as suas lembranças, Vera percebeu que já estava chorando.
 A sineta do porteiro soou. Eram, com certeza, as marmitas que o rapaz de todos os dias vinha deixar, notadamente. Tais marmitas eram adquiridas em um restaurante do bairro onde ficava o edifício que Vera Muniz residia. Para Vera era mais fácil comprar em um restaurante próximo ao seu edifício do que mandar trazer direto do restaurante que a firma mantinha no seu local de trabalho.  A mocinha Otília atendeu ao interfone e falou para Vera.
--- O rapaz das marmitas. – relatou a moça à Vera.
A mulher estava apenas folheando a revista de modas e deu a entender que o mandasse trazer de pronto. Foi o que Otilia disse ao interfone a falar com o guarda da hora. As marmitas eram apenas uns pratos cobertos. E o garoto da entrega com alguns minutos chegou até o andar de Vera Muniz. Até parecia que Otilia o estava aguardando. Pois quando tocou a sineta a porta logo se abriu. A moça recebeu a encomenda e disse para o rapaz:
--- Tem as de ontem para levar. – falou a moça sem maior preocupação.
O rapaz esperou o que tinha de levar de volta e nem mesmo agradeceu. A moça fechou a porta dizendo umas palavras ao entregador de vasilhas.
--- Bruto! Nem agradece! – ressaltou a moça Otilia com a cara amuada.
Logo após a hora do almoço a sineta voltou a tocar. Era o rapaz da vigia anunciando a presença de Racilva que estava a subir no elevador. Otilia por sua vez fez espera para atender a porta que se fechava de forma automática. Quando Racilva entrou no apartamento, Otilia fez um sorriso e depois rumou para o seu local de trabalho. Antes, passou pelo quarto e disse a Vera:
--- Visita. – e sorriu Otilia.
A duas amigas entraram em conversa e risadinhas. Coisa de mulheres. Racilva lhe entregou uns papéis para Vera ver se estavam certos, muito embora já, de antemão, soubesse que em nada faltava para Vera poder assinar. Depois de tudo pronto Racilva indagou sobre as novidades. E Vera apenas relatou:
--- Bucho! – e caiu na gargalhada fazendo vez para Racilva também sorrir.
E as duas continuaram a conversar e a sorrir. No apropriado instante, Vera Muniz, com sua barriga enorme, de oito meses de vida, lembrando-se de seu avô, apenas comentou o que lhe sobrou à mente.
--- Sabe Racilva! Eu às vezes fico a pensar. Se eu, por acaso morrer desse parto, eu te peço, por favor, que você tome conta desse menino. E se possível, case com Silas. Para mim, ele é tudo. E você é minha única amiga. – confessou Vera em lágrimas.
--- Que é isso Vera! Você vai viver muito tempo. Eu... - e chorou Racilva com o pedido que lhe fora feito pela amiga Vera Muniz tão amarguradamente.
--- Mas você me diga se atende a minha súplica? Não sei se escapo! Não sei! – falou Vera Muniz com a sua voz quase nula e derramando em prantos.



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