sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

DOIS AMORES - TREZE -

- Fernanda Vasconcellos -
- 13 -
- CURIOSIDADE -
Com o passar do tempo o alemão Klaus Renner despertou a sua curiosidade ao ver por demais aguçar  naquela mulher, ainda jovem, de meia idade algo semelhante com tantas patrícias suas de tempos passados. Apesar de ser brasileira, sua cor era alva e de cabelos claros, tal fato a despertar maior atenção. E Klaus, divagar indagou:
Klaus:
--- A senhora tem estudos? – indagou.
Maria:
--- Quem? Eu? Imagine! Fiz o primeiro ano do primário! Eu nasci numa fazenda perto de Japi. Ainda menina de pouca idade, a minha mãe se mudou para Santa Cruz. E depois, nós viemos para Macaíba. Pai eu nunca tive. Apenas mãe. E nem tive irmão. Levei a vida a vender na feira as bugigangas feitas por minha mãe. Depois que ela morreu, eu tive que inventar outra coisa. Arranjei um sapateiro. Esse homem era estudioso. Batia sapato o dia todo, e em troca se pagava com livros. Ele morreu, faz um ano. Mas deixou a sua riqueza: livros. Filho: Nenhum. – disse Maria a lavar o chão.
Klaus:
--- A senhora conhece muitas pessoas? – perguntou com as mãos para trás e olhado a janela.
Maria:
--- Ah. Conheço. Modo de dizer. Conheço o Governador. De vista. Mas eu conheço. De perto, não. Conheço o soldado Carvalho. Esse eu conheço porque todos os dias ele passava em minha banca para comprar frutas. E conheço também o Prefeito. Apenas de longe. Mas conheço. – respondeu a lavar o chão.
Klaus ficou a vigiar a mulher. Ela continuava seu afazer doméstico. O homem batia as mãos para trás uma sobre a outra e olhava como se observa o tempo. E indagou:
Klaus:
--- A senhora nasceu aonde, mesmo? – voltou a querer saber.
E a mulher ocupada então com o assoalho respondeu.
Maria:
--- Japi. Uma nesga de terra. Minha mãe morava na terra do Coronel Theodorico. Um velho baixo. Quer dizer: muito baixo, não. Mas era baixo. Dizem que ele nunca foi coronel. Mas o povo só chama de Coronel. – respondeu a mulher enxugando o tapete.
Klaus:
--- E a senhora? – perguntou o homem.
Maria:
--- Que tenho eu? – indagou a sacudir o pano.
Klaus:
--- O conhece? – perguntou.
Maria:
--- De vista. Ele passava pela frente lá de casa quando a gente já morava em Santa Cruz. Então eu o via passar. Eu calada. Toda acabrunhada. Nem falava. Também eu era desse tamanho. Pequena. – e fez com a mão a altura da menina.
Klaus:
--- E hoje? – indagou.
Maria:
--- Hoje? Eu nunca mais o vi. Parece que ele até morreu. Que Deus o tenha! – suplicou como quem reza.
O ancião ficou a lembrar de casos do seu passado embora nada tenha falado a mulher faxineira. Ele olhava apenas para o céu como se avistasse alguém há muito tempo não visto. Com a sua cara rude de poucos sorrisos, Klaus Renner era um homem taciturno por excelência. Maria caminhava de um lado para outro e falou então:
Maria:
--- O senhor guarda livros nessa estante? – falou sem demonstrar o caso.
Klaus:
--- Alguns! – destacou o ancião.
Maria:
--- Não sei não. O meu marido ou homem – modo de falar – tinha muitos (livros) guardados em uma banca. Alguns, ele reservava. Tinha um monte deles. Política, dia ele. Tinha livros de todos os assuntos. Eu nunca li. Também eu não sei ler. Fotos, até demais. Tinha um livro só de fotos que ele conservava. Um deles, o defunto dizia que, quanto morresse queria que o livro fosse com ele no caixão. Ele o chamava de “Minha Luta”. Eu nem coloquei. Também eu nem me lembrei de tal coisa. Esse livro ainda está guardado no baú. – disse tristonha.
Klaus:
--- Mein Kampf? Minha Luta? – indagou com surpresa.
Maria:
--- Senhor? – falou a mulher como se não tivesse entendido ao certo
Klaus:
--- O livro? O livro que o seu marido guardava? – perguntou extasiado
Maria:
--- Um livro dele. Ele queria tanto bem a esse livro. Quase sempre o estava a ler. – falou a espanar os móveis.
Klaus:
--- Senhora. Fale-me mais do seu marido! Quem ele era! Fale! – dialogou o homem um tanto eufórico.
Maria:
--- Meu marido? Ele era um sapateiro. Depois que serviu ao Exercito continuou com o seu oficio na sua casa. Lá em casa. Homem sisudo. Cabelos loiros. Pele rosada. Não conversava muito. Às vezes com um velho amigo. Esse sumiu de vez. Às vezes saia à noite para tal de reunião. Também não me dizia aonde. Apenas saía. Quando voltava, ele nada falava. Usava um terno para sair à reunião. Uns amigos viam lhe chamar para sair. Dessas coisas. Quando morreu esses amigos levaram o caixão. Depois sumiram! – relatou a mulher com voz dentre lágrimas.
Klaus:
--- Ele não tinha nenhuma correspondência? Revistas? – perguntou com atenção.
Maria:
--- Revistas? Tem muitas. Guerra. Mortes. Tanques. Cada coisa horrível que dá dó. – relatou Maria sem se notar de conta.
Klaus:
--- Eu posso ver alguns livros? Pelo menos o que ele queria muito bem? – indagou com emoção
Maria:
--- O “Minha Luta”? Se o senhor tiver tempo eu trago amanhã mesmo. Ele e outros livros! – relatou a mulher sem tecer mágoas.
Klaus:
--- Isso! Isso! A senhora traga esse livro! Por favor! – relatou com ênfase.
E nesse ponto, o alemão Klaus permitiu à mulher espanar a sua estante para colocar tudo em ordem, sabedor ter sido o seu marido um homem profundamente nazista como muitos outros velhos guerreiros.

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