- Fernanda Vasconcellos -
- 13 -
- CURIOSIDADE -
Com o passar do tempo o alemão
Klaus Renner despertou a sua curiosidade ao ver por demais aguçar naquela mulher, ainda jovem, de meia idade
algo semelhante com tantas patrícias suas de tempos passados. Apesar de ser
brasileira, sua cor era alva e de cabelos claros, tal fato a despertar maior
atenção. E Klaus, divagar indagou:
Klaus:
--- A senhora tem estudos? –
indagou.
Maria:
--- Quem? Eu? Imagine! Fiz o
primeiro ano do primário! Eu nasci numa fazenda perto de Japi. Ainda menina de
pouca idade, a minha mãe se mudou para Santa Cruz. E depois, nós viemos para
Macaíba. Pai eu nunca tive. Apenas mãe. E nem tive irmão. Levei a vida a vender
na feira as bugigangas feitas por minha mãe. Depois que ela morreu, eu tive que
inventar outra coisa. Arranjei um sapateiro. Esse homem era estudioso. Batia
sapato o dia todo, e em troca se pagava com livros. Ele morreu, faz um ano. Mas
deixou a sua riqueza: livros. Filho: Nenhum. – disse Maria a lavar o chão.
Klaus:
--- A senhora conhece muitas
pessoas? – perguntou com as mãos para trás e olhado a janela.
Maria:
--- Ah. Conheço. Modo de dizer.
Conheço o Governador. De vista. Mas eu conheço. De perto, não. Conheço o
soldado Carvalho. Esse eu conheço porque todos os dias ele passava em minha
banca para comprar frutas. E conheço também o Prefeito. Apenas de longe. Mas
conheço. – respondeu a lavar o chão.
Klaus ficou a vigiar a mulher.
Ela continuava seu afazer doméstico. O homem batia as mãos para trás uma sobre
a outra e olhava como se observa o tempo. E indagou:
Klaus:
--- A senhora nasceu aonde,
mesmo? – voltou a querer saber.
E a mulher ocupada então com o
assoalho respondeu.
Maria:
--- Japi. Uma nesga de terra.
Minha mãe morava na terra do Coronel Theodorico. Um velho baixo. Quer dizer:
muito baixo, não. Mas era baixo. Dizem que ele nunca foi coronel. Mas o povo só
chama de Coronel. – respondeu a mulher enxugando o tapete.
Klaus:
--- E a senhora? – perguntou o
homem.
Maria:
--- Que tenho eu? – indagou a
sacudir o pano.
Klaus:
--- O conhece? – perguntou.
Maria:
--- De vista. Ele passava pela
frente lá de casa quando a gente já morava em Santa Cruz. Então eu o via
passar. Eu calada. Toda acabrunhada. Nem falava. Também eu era desse tamanho.
Pequena. – e fez com a mão a altura da menina.
Klaus:
--- E hoje? – indagou.
Maria:
--- Hoje? Eu nunca mais o vi.
Parece que ele até morreu. Que Deus o tenha! – suplicou como quem reza.
O ancião ficou a lembrar de casos
do seu passado embora nada tenha falado a mulher faxineira. Ele olhava apenas
para o céu como se avistasse alguém há muito tempo não visto. Com a sua cara
rude de poucos sorrisos, Klaus Renner era um homem taciturno por excelência.
Maria caminhava de um lado para outro e falou então:
Maria:
--- O senhor guarda livros nessa
estante? – falou sem demonstrar o caso.
Klaus:
--- Alguns! – destacou o ancião.
Maria:
--- Não sei não. O meu marido ou
homem – modo de falar – tinha muitos (livros) guardados em uma banca. Alguns,
ele reservava. Tinha um monte deles. Política, dia ele. Tinha livros de todos
os assuntos. Eu nunca li. Também eu não sei ler. Fotos, até demais. Tinha um
livro só de fotos que ele conservava. Um deles, o defunto dizia que, quanto
morresse queria que o livro fosse com ele no caixão. Ele o chamava de “Minha
Luta”. Eu nem coloquei. Também eu nem me lembrei de tal coisa. Esse livro ainda
está guardado no baú. – disse tristonha.
Klaus:
--- Mein Kampf? Minha Luta? –
indagou com surpresa.
Maria:
--- Senhor? – falou a mulher como
se não tivesse entendido ao certo
Klaus:
--- O livro? O livro que o seu
marido guardava? – perguntou extasiado
Maria:
--- Um livro dele. Ele queria
tanto bem a esse livro. Quase sempre o estava a ler. – falou a espanar os
móveis.
Klaus:
--- Senhora. Fale-me mais do seu
marido! Quem ele era! Fale! – dialogou o homem um tanto eufórico.
Maria:
--- Meu marido? Ele era um
sapateiro. Depois que serviu ao Exercito continuou com o seu oficio na sua
casa. Lá em casa. Homem sisudo. Cabelos loiros. Pele rosada. Não conversava
muito. Às vezes com um velho amigo. Esse sumiu de vez. Às vezes saia à noite
para tal de reunião. Também não me dizia aonde. Apenas saía. Quando voltava,
ele nada falava. Usava um terno para sair à reunião. Uns amigos viam lhe chamar
para sair. Dessas coisas. Quando morreu esses amigos levaram o caixão. Depois
sumiram! – relatou a mulher com voz dentre lágrimas.
Klaus:
--- Ele não tinha nenhuma
correspondência? Revistas? – perguntou com atenção.
Maria:
--- Revistas? Tem muitas. Guerra.
Mortes. Tanques. Cada coisa horrível que dá dó. – relatou Maria sem se notar de
conta.
Klaus:
--- Eu posso ver alguns livros?
Pelo menos o que ele queria muito bem? – indagou com emoção
Maria:
--- O “Minha Luta”? Se o senhor
tiver tempo eu trago amanhã mesmo. Ele e outros livros! – relatou a mulher sem
tecer mágoas.
Klaus:
--- Isso! Isso! A senhora traga
esse livro! Por favor! – relatou com ênfase.
E nesse ponto, o alemão Klaus permitiu
à mulher espanar a sua estante para colocar tudo em ordem, sabedor ter sido o
seu marido um homem profundamente nazista como muitos outros velhos guerreiros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário