segunda-feira, 18 de abril de 2011

DESEJO - 34 -

- Julie Andrews -
- 34 -
--- Socorro!!! Socorro!!! Me acudam!!! A minha casa!!! – gritava em delírio a mulher a correr pela viela escura da vila sob torrente aguaceiro.
Nunca se tinha ouvido clamor tão intenso por toda aquela vila. As pessoas estavam acordadas depois de meia noite, com luzes apagadas e tendo somente velas, candeeiros e lamparinas acessam no meio do vendaval perigoso e tétrico. Jamais alguém ouvira tal infausta tempestade em época de estio. Os trovoes bramiam no escuro alumiado por faísca de raios constantes. E a mulher a gritar sem parar findou cair na metade da viela, já fatigada e sem forças para mais gritar um pedido exaustivo de socorro. Um homem atento a tudo abriu a meia porta de seu casebre e, com o candeeiro procurou divisar em meio a enxurrada de água e lama. Quase ele não notava o pesado corpo caído na viela. Porém, enfim, ele divisou a mulher caída no lamaçal a continuar a fazer por toda a parte do vilarejo. O homem cobriu a sua cabeça com um molambo e saiu em desabalada carreira até onde estava deitada, sem forças, angustiada a mulher quase morta. Ele puxou a mulher e veio às filhas do homem para ajudá-lo a pegar naquele trapo de pessoa. As mocinhas logo reconheceram a pessoa.
--- É Índia, meu pai! É Índia! – dizia uma moça cheia de cisma quando viu a mulher caída.
Enfim as três pessoas ajeitaram o corpo de Índia até chegarem a sua casa. A mulher gemia constante como a quem querer dizer algo. A chuva intermitente não para de cair bem mais forte do que antes. Raios e trovoes ecoaram desde a serra e por todo o canto. O rio das Três Bocas transbordou de vez arrastando todo o plantio de horta, milho, feijão e mandioca feita ao seu redor. Era um turbilhão de água a subir tão depressa como nunca d’antes visto. E a mulher, a Índia, já mais calma de repente se levantou para correr sendo impedida pelas duas moças. Ela não temeu em dizer o que estava a acontecer:
--- Minha tapera! Minha tapera! Minha tapera! – chorava Índia ao desespero.
--- Tudo está alagado. – relatou o homem assombrado.
--- Mas Mundica estava na rede e a água do rio arrastou para fora. – declarou Índia a chorar.
--- Que?! Mundica? Como? – declarou o homem estupefato.
Mundica era uma senhora de 86 anos de idades, acometida de doença, não podendo sequer andar sozinha sem amparo de sua nora Índia. O filho era pescador e estava no mar a àquela hora da noite/madrugada. O rio veio com ímpeto e arrastou a choupana e todos os demais pertences. E nesse estado de coisa levou também a velha senhora para o mar. A mulher não soube dizer qual a situação das casas mais próximas. Contudo lembrou-se de todos com um medo terrível se amparando de qualquer jeito por entre as árvores, alguns subindo para alcançar os mais altos dos paus. Por toda a madrugada a torrencial continuava sem cessar. Os homens foram alertados e todos procuraram localizar o corpo de Mundica. Porém, a escuridão reinante não media esforços dos caboclos. O alagado do rio das Três Bocas por todo o seu percurso até ao oceano não deixava a ninguém rever o seu estado normal. O dia começava a despontar com o aguaceiro intermitente e as buscas incessantes do corpo da anciã. Tudo em vão para se encontrar Mundica.
Na casa grande, a moça Ângela, falo em precisar ir a sua choupana para ver a situação da anciã com as chuvas da madrugada. E saiu correndo, por entre o temporal constante até a sua moradia. Em casa, no “Mundo Velho”, ficaram Armando Viana e Norma Vidigal. A moça a rezar insistente pedindo a proteção divina de modo a aplacar a sua ira. O rapaz a olhar o mar bravio e divisar alguma jangada com seus tripulantes. Mesmo assim, nada pode ver.  Era a manhã de sábado. O dia já aparecera. Os homens da vila a procurar algo. Armando não sabia o que. Mesmo assim, ele chamou Norma para ver os homens e rapazes indagando se eles estariam pescando algo.
--- Não sei. Acho que não. É possível que estejam à procura de algo mais. Talvez uma rede. – relatou a moça.
--- Rede de que? – perguntou Armando inquieto.
--- De pesca, com certeza. – comenta Norma. E volta a olhar atenta os homens.
--- Deve ser. – relatou Armando. Em pouco tempo ele saiu da porta.
O homem do peixe, todo molhado, veio trazer os pescados para Norma. Ao ser perguntado o que havia demais no rio, o homem comentou ser a procura de um corpo. A moça, quase em pânico chamou o seu namorado para ouvir o relato do pescador. O homem não sabia dizer algo mais. Mesmo assim, informou ter o rio recebido muita água e destruiu uma choupana plantada às suas margens e arrastado uma anciã.
--- Quem foi a mulher? – indagou Norma temendo temer a sorte do pessoal da vila.
--- Mundica. Uma velhinha. Ela foi arrastada pela correnteza. – relatou o pescador.
--- Meu Deus do Céu!!! Mundica? A velhinha dos remédios?! – indagou a moça alarmada com tal situação tão deprimente.
--- Quem era Mundica? – perguntou Armando a Norma.
--- Uma anciã. Quando mais jovem, ela fazia remédios do mato. Curava tudo. Era juá, jucá, quina-angélica, mutambo, marmeleiro. Era um sem numero de cascas de pau. Ela deixou à sua nora a receita de tudo. A mulher, agora, é quem faz. Ela colhe mel como ninguém. – falou Norma com pena da anciã e começando a chorar.
--- Eu imagino! E pergunto ao pescador: o que os homens e rapazes estão à procura no rio? – indagou Armando falando ao pescador.
--- O corpo da velha. E tem mulher a procura do corpo. Porque a chuva dificulta encontrar. – relatou o pescador a olhar para a aglomeração de gente a beira do rio.
--- É verdade. Eu estou vendo agora. Muitas mulheres. Parece que até Ângela está a procura do corpo também. – descreveu Armando Viana.
--- Deixa eu ver se é Ângela. Deixa! – pediu  licença a moça saindo fora de casa.
--- Olha ali mais para cá. É Ângela. – comentou Armando com temor.
E os três companheiros – Norma, Armando e o pescador - ficaram no casarão a olhar com atenção o movimento das pessoas dos dois lados do rio das “Três Bocas”. Um corisco rompeu o céu para se abrigar entre o matagal existente no alto da serra. Armando logo pensou: naquele dia a viagem fora desfeita.
Choveu durante todo o dia e a noite seguinte. Chuvas, relâmpagos, trovão e ventania. As vielas existentes no quadro de taperas foram todas tomadas pelo aguaceiro. O rio das “Três Bocas” encheu de tal forma que quase ninguém conseguia atravessar de um lado para o outro. Não por ficar de calça e vestido molhados. Mas sim, pelo aguaceiro formado. O casal de namorados resolveu não sair de casa e esperar a vinda de Ângela trazendo novidades sobre o achado do corpo de dona Mundica. Era a única novidade havia para se contar. Armando Viana aproveito a cheia e fez diversas fotográficas e gente, praias, e da própria lama. Enfim, aquilo era tudo o que restava para fazer e ser feito. Na sua memória pairava um fato a dizer ao chegar na segunda-feira ao escritório. Enfim ela bem disse trazer uma matéria. O domingo era todo de luto. O corpo de Mundica fora encontrado preso entre os troncos caídos pela força do rio. Foi um pranto só. A população do vilarejo sentiu profundo amargor com a perda da anciã de 86 anos de idade. Apesar de estar com uma idade bastante avançada, Mundica era tida como uma santa e seus conselhos eram dados aos mais jovens como um recado de lei.
O sepultamento do corpo de dona Raimunda Quinderé se deu no mesmo domingo em que o corpo foi encontrado pelos habitantes da vila, nem tanto assim, em meio à lama a cobrir a estrada de barro por onde se podia alcançar o cemitério do lugar. O sepultamento da anciã foi numa rede de malha já bastante estragada pelo tempo. A chuva constante durante o sábado e parte do domingo não deu margem a se encontrar um carpinteiro por fazer um caixão de mortos. E mesmo tendo se encontrado o tal carpinteiro ou marceneiro, o filho de Mundica não teria meios de custear. Apenas no lugar havia quem pudesse sustentar tal despesa: Norma Vidigal. Mesmo assim, era não haver um marceneiro na vila e os estragos da chuva impediam de se ir mais além buscar o caixão para sepultar Mundica. E era bastante comum se enterrar os mortos em redes de dormir naquele vilarejo.
--- Eu acredito que vou chorar de pena! – lamentou Norma ao falar ao seu namorado ao caminhar para o sepultamento da anciã.
--- Conforme-se. Conforme-se. – lembrou Armando também sentido.
O vento frio soprava constante muito embora a chuva já tivesse cessado às quatro horas da tarde. O céu nublado parecia clamar por um pouco de paz para os mortos. Norma, de fronte baixa delegou seu último adeus à mulher sepultada em uma rede de malha e um cobertor a enrolar o seu franzino corpo. Ao mesmo instante se recostou ao ombro de seu amor. O relógio em seu pulso marcava pouco além das quatro e meia. As mulheres copiosamente choravam pela dor sentida por conta de Mundica. Os homens eram mais sombrios e resolutos. Uma chuva fina cobriu misteriosamente a sepultura da anciã. Parecia se ouvir um lamento de anjos a clamar pela alma da mulher. Norma soluçou constante ao ver a catacumba ser coberta de areia como um derradeiro aceno a quem tanto rezou pelo bem de todos e de cada um. O cantar de um sabiá se ouviu parecendo sentir aquele adeus para todo o sempre na tarde triste e lânguida de um temor sereno e cinza para sempre sem fim.

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