segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

DESEJO - 04 -

- Guilhermina Guinle -
- 04 -

O veículo já havia atravessado a pequena cidade de Sertânia, passando pela praça principal, a Igreja Matriz e a sede da Prefeitura entre outros órgãos do Município e alguns do Estado. Ainda havia o matadouro e uma ponte sobre o rio que passava no local. Rodando mais um pouco, o motorista encontrou a celeuma: dezena de vaqueiros, todos muito bem armados com facões, serras e até mesmo espingarda, gritavam mais alto do que podiam. “Queremos Passar”. Isso era ouvido por todos os que estavam no carro de praça: o motorista, o repórter e o fotógrafo. O clima era de tensão. E já durava a noite e o dia anterior. O gado estava ao longo de uma cerca a pastar sonolento. Isso então podia significar que tudo aquilo não era nem com ele. O Governador do Estado já havia chegado e estava reunido com seus amigos e parte dos que impediam a passagem dos vaqueiros exaltados, enraivecidos e cheios de cólera. Havia batucada ensurdecedora ao longo do trajeto onde os vaqueiros se punham. Rodas de homens a batucar os seus tambores se faziam notar. Em meio do interminável barulho, Canindé chegou a filmar as armas e os vaqueiros. Ele desceu do carro e começou a filmar todos os componentes, alguns com as armas engatilhadas prontas para deflagrar fogo. Era um alarido infernal aquele. E Canindé tanto fazia filmagem como batia fotos. Por seu lado, o seu companheiro Armando Viana procurava entender de forma mais precisa o que se passava naquele aglomerado de vaqueiros ensandecidos. E a resposta era uma só:
--- Queremos passar e ninguém arreda o pé. – diziam os vaqueiros.
--- E só tem este lugar? – perguntava Armando aos vaqueiros.
--- Esse é o mais próximo das terras onde se leva o gado. E eles empataram porque a gente leva o gado e não paga nada. – disseram os vaqueiros em meio ao ensurdecedor barulho das latas que eles improvisaram como tambores.
--- Mas eles querem quanto? – indagou Armando procurando ouvir bem.
--- Eles não disseram. Apenas empataram o gado de passar. – falaram os vaqueiros.
--- E de quem é esse gado? – perguntou Armando procurando de qualquer forma ouvir o que os vaqueiros respondiam.
--- Do coronel Lustosa. – respondeu um vaqueiro em meio a tanta zoada.
--- E onde está o coronel? – perguntou Armando tentando ouvir o que alguém respondia.
--- Reunido com o Governador e a cambada do outro lado. – disseram os vaqueiros.
--- E de quem é a casa grande que o governador está? – indagou Armando quase sem ouvir direito a resposta.
--- Da cambada. Do coronel Vitorino. Ele é quem manda aqui em toda Sertânia. – falaram os exaltados vaqueiros.
E enquanto Armando perguntava aos vaqueiros, Canindé filmava e batia fotos dos exaltados campeiros.  Os jagunços do Coronel Vitorino estavam aquartelados em trincheiras armadas bem dentro do sitio com armas de grosso calibre. Armando tentou chegar até onde estavam os jagunços para ouvir a sua versão e foi impedido de falar com qualquer jagunço. Apenas o jagunço mor podia falar e dizer qualquer coisa que o repórter teria a perguntar. No meio de tanta balburdia já cheio de orgulho por conta a reportagem, os vaqueiros abriram fogo contra os jagunços esperando não haver revide por parte deles. No meio de tanta zoada, um tiro se ouviu do meio dos vaqueiros. Em contrapartida, os jagunços fizeram fogo de volta. Foi então onde teve inicio a algazarra. Os jagunços entrincheirados de nada temiam. Os vaqueiros, de modo a corpo nu, revidaram o contra-ataque. Era bala com bala. Tiro com tiro em uma contenda infernal. Armando procurou se esconder dos ataques dos vaqueiros por trás de um mourão. Canindé se protegia por trás do carro filmando toda a contenda. Mesmo de longe filmou as armas dos jagunços a deflagrar a morte certa. E foi então que um disparo atingiu o vaqueiro de nome Zaqueu. Tiro certeiro no seu peito e o homem caiu sem vida. A tremenda algazarra se formou então com os vaqueiros revoltados soergueram o corpo de Zaqueu e rumaram com fé e coragem para o embate corporal e, talvez, derradeiro. Com tiros certeiros, os jagunços despejaram fogo contra os manifestantes encolerizados levando o corpo do homem abatido por balas certeiras. Armando estava encolhida por trás de um mourão vendo tudo como uma cena de cinema. O estrondar dos mosquetões ecoavam distantes. A morte comandava aqueles que nada temiam. Os jagunços tinham a sorte de um terreno acidentado e deflagraram seus gatilhos contra a turba de revoltosos. Foi muita morte que se fez e só se via corpos estendidos pelo chão dos destemidos vaqueiros. O gado enlouquecido por tanto barulho resolveu enfrentar o cerco dos jagunços e pularam para dentro do cerrado por cima dos homens. Os disparos feitos contra o gado de nada serviam, pois os animais marchavam a força com tudo o que podiam. O alarme foi dado na fazenda de que os jagunços haviam sido abatidos pela turba de gado louco. Nesse ponto, o repórter Armando correu para dentro do carro e, acompanhado do fotógrafo Canindé e do motorista Giba saíram de onde estavam sem buscar proteção do Governador. Era um alvoroço total com os vaqueiros invadindo a fazenda do Coronel Vitorino e se atracando de modo ferrenho com os seus inimigos. Tomando-lhes as armas os vaqueiros partiram para o revide acertando em cada qual seu tiro judicioso. Houve pânico em toda a trincheira do cercado e os que ainda sobraram com vida correram para a fazenda do coronel Vitorino. Alguns eram acertados pelas costas no meio da tremenda  fuga. E os vaqueiros com o corpo de Zaqueu como o símbolo da mortandade, enraivecidos igual a um animal ferido nada temiam. Mais jagunços se postaram a frente da fazenda em defesa dos seus ocupantes. O Governado, entristecido, clamava aos céus.
--- Tudo ia tão bem. Ai meu Deus do céu. – reclamava o governador a chorar. 
Na frente da Fazenda Quinhão, do coronel Vitorino, a algazarra estava formada. Os seus jagunços ainda não participantes na contenda da entrada da quinta fincaram o pé com armas de grosso calibre, enfarruscados pela morte de seus amigos. Eles esperavam só a ordem de atirar para matar vinda do coronel Vitorino. Porém tal ordem não foi dada. O coronel apareceu ao lado do governador e de outros que se achavam presentes, como o coronel Lustosa, e pediu calma aos inquietos vaqueiros. Naquele momento estava dada a ordem de passar com o gado pelo cercado de sua fazenda. Mesmo assim, os beligerantes reclamavam a ordem de atirar para matar vinda para os seus jagunços. O Governador então disse que isso também seria apurado e os assassinos seriam castigados em praça pública. Esse era a decisão tomada por seu Governo.
--- Vocês podem atravessar de hoje em diante. Não haverá mais qualquer repressão. – falou entusiasmado o Governador.
--- Mas e os mortos? E os mortos? – gritaram os vaqueiros querendo morte a quem matou.
--- Vocês tenham calmas. Pois houve mortes dos dois lados. Pois agora é trabalhar! – advertiu o Governador.
Aos poucos, os vaqueiros foram saindo e no local da refrega ensandecida prosseguiram em apanhar os corpos dos campeiros mortos. O corpo de Zaqueu seguiu em cortejo até a praça da cidade como símbolo da resistência. Na verdade, ele era mais um dos motos na disputa pela passagem do gado para o sertão distante. Outros vaqueiros tomaram conta do oficio de levar o gado enquanto a Fazenda Quinhão os jagunços faziam o enterro dos seus companheiros. A zanga entre vaqueiros e jagunços continuou tempos a fora, encontrando-se morto alguém de um lado e de outro na vereda do sertão.
Armando Viana, o fotógrafo José Canindé e o motorista, o homem Giba. Esses igualmente fizeram parte da comitiva do Governador para seguir viagem para a capital do Estado. No meio do caminho enfrentando copiosa chuva cortada por rigorosos relâmpagos e trovões, a comitiva do Governador se viu trancada no caminho. A ponte do Rio Sem Nome desmoronou sem deixar alternativa de viagem para qualquer vivente. O vento frio e constante era ainda maior. No meio do caminho para Sertânia não houve ventania tão forte. O temporal era intenso alagando tudo que encontrava pelo caminho. Nesse momento, cheio de carros atrás, fazendo verdadeiro comboio. O Governador tomou a decisão incontinente de seguir viagem por outra estrada. O motorista ficou alarmado com tal precipitação do homem. Porém mesmo assim ele obedeceu às ordens dadas e seguiu viajem por uma estrada vicinal.
--- Por essa estrada vai ser muito difícil, senhor! – relatou o motorista ao Governador.
--- É provável. Mas não tem outro jeito. – declarou o Governador.
De todo modo o dilúvio continuou por longas horas do dia. O repórter Armando se encolhia em seu carro igual a um rato. Por seu lado, Canindé reclamava da sorte tida de ter que fazer uma cobertura tão violenta como aquela. E encolhia-se no banco de trás colocando o saco com seus instrumentos de trabalho como um travesseiro e ali mesmo adormeceu. O motorista seguiu a carro do Governador a certa distancia, atravessando lamaceiros e buracos feitos pela chuva, o gado e outros carros-de-boi de por ali passavam em certos tempos.
--- Demora muito? – indagou Armando já nervoso.
--- Não sei. Nem conheço o caminho. Estou seguindo o motorista do Governador. – respondeu o motorista pleno de inquietação.
No banco de trás se ouvia muito bem o roncar de Canindé. O homem passara por momentos na vida ao qual nunca tivera temor. Armando olhou para trás e verificou o fotógrafo.
--- Dormiu mesmo. Que nem um anjo. – sorriu Armando Viana.

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