terça-feira, 22 de março de 2011

DESEJO - 08 -

- Scarlett Johansson -
- 08 -
Na quinta-feira, o dia amanheceu chuvoso. Verdadeira tromba d’água caía sobre a capital desde as primeiras horas do dia. Uma enxurrada levava para o bairro baixo da Ribeira montes de lixo. Era um verdadeiro caos. No mercado da Cidade se ouvia o gritar dos carregadores de compras a pedir passagem a toda hora.
--- Olha o MELADO! Olha o MELADO! Olha o MELADO! – gritavam os carregadores assustando toda pouca gente no seu percurso.
Os vendedores de frutas, legumes, e mesmo outros artigos comestíveis se esquivaram de locar as suas bancas na calçada em frente. O homem do leite estava todo encharcado em sua banca na casa ao lado do mercado. Poucas pessoas apareciam até àquela hora da manhã. O bonde fazia a manobra para descer à Ribeira sem temer ficar preso na linha. Os caminhões de frutas despejavam suas cargas com chuva ou sem chuva no Beco do Mercado. Os estabelecimentos ainda guardavam silencio para os seus pobres compradores. Pelo pátio da casa grande não se via quase ninguém. Nem o Colégio parecia ter aula àquela hora tenra da manhã. Os habituais freqüentadores dos cafés no local funcionando estava encolhidos de tanto frio. O roncar surdo do trovão se fazia ouvir como se fosse por cima do Mercado. E os relâmpagos faziam o seu triscar a todo instante. Houve falta de luz elétrica durante vastas horas da madrugada. E ainda nesse momento a luz não havia sido restabelecida na casa grande. Tudo o que havia era a luz de vela e de lamparina.
Do seu canto, Canindé olhava tão somente para as telhas de amianto que cobria o Mercado. Encolhido como um macaquinho, ele apenas dizia:
--- Ribeira? Hoje? Nunca! – sentenciava Canindé todo amuquecado com um sorriso leve.
--- Tá ruim, hoje! E quem trabalha lá? – perguntou um dos freqüentadores do café.
--- Pois é. Eu trabalho na Rua Visconde do Uruguai. – respondeu Canindé tremendo de frio.
--- Virgem Maria! Está que é uma lagoa naquele baixio. – respondeu o freqüentador. 
--- Eu não tenho medo de chuva. Mas o danado é o meu pescoço. – ressaltou o fotógrafo.
--- Pescoço? – indagou o homem a sorrir.
--- É. O diabo me doe quando chove. – fez careta Canindé coçando a nuca.
--- Já vi gente que tinha dor na perna. – sorriu o freqüentador.
--- Isso é uma merda. – falava baixo Canindé coçando o seu pescoço.
Nesse momento, entrava no Mercado o rapaz Armando Viana em uma correria estonteante. Ele estava muito bem encapado e sua roupa não molhara quase nada. Apenas disse para os freqüentadores do café que já estavam encolhidos temendo o temporal avassalador da manhã
--- Que vendaval! Nem no interior foi tanto assim! – falou tremendo Armando.
--- Nem me fala! Aquele foi temporal mesmo de se assustar! – falou Canindé com seu temor.
--- Está faltando luz aqui também? – perguntou Armando assustado.
--- Está. Não se enxerga nada. – falou Canindé amassando o pescoço.
Nesse ponto chega à banca do café um homem vindo da parte baixa da cidade. Ele foi logo dizendo aos presentes, todos assustados com os relâmpagos e trovões. O estrondoso barulho seguia a forte ventania acompanhada de grossa chuva.
--- Lá em cima está uma tragédia! – disse o homem com alarme.
--- Lá em cima aonde? – indagou Armando ao forasteiro.
--- Lá em baixo. Na Rua do Motor. Casas se desmancham como papel !!!  - declarou alarmado o forasteiro.
--- Onde fica a rua? – quis saber mais detalhes o repórter Armando.
--- Na praia. As casas estavam na encosta do morro. E com essa chuva intermitente tudo se desmanchou como papel. Fala-se em muitas várias mortes. Velhos e crianças. Tem uma pobre mulher grávida também. Está um clamor a situação! – reclamou o homem.
--- O senhor veio de lá? – falou Armando ao homem mal trajado.
--- Vim! Mas vou voltar. Os Bombeiros estão no lugar para socorrer as famílias afetadas. Uma coisa enorme. Só se anda com muito cuidado. Casas em cima e em baixo da rua. Tragédia! – comentou o homem ao desespero.
--- Vamos lá Caninda? É urgente! – conclamou Armando.
--- Tenho que pegar filme. – declarou Canindé agoniado.
--- Pega em palácio. A Ribeira também está um caos. Vamos no carro de Giba. Logo homem!! – reclamo Armando para Canindé ter mais ação.
--- Espera seu corno! Não está vendo que estou levando a bolsa???? – reclamou Canindé um tanto aborrecido.
E os dois homens saíram para o Palácio onde Canindé poria filme na máquina de fotos. Ele levaria alguns para qualquer necessidade surgida. Do Palácio eles foram à praça de carros onde tomaram de imediato o veiculo de Giba deixando para trás outro passageiro. Esse homem estava à procura de carro e foi impedido por Armando. O repórter apenas disse:
--- Com licença. É urgente! – falou Armando entrando no carro de Giba.
Canindé pegou o banco de atrás e ouviu ainda o homem posto fora se lamentar e afirmar.
--- Ainda compro um carro pra mim. – e saiu de rua a fora.
O motorista, a sorrir, apenas perguntou:
--- Vamos para onde? – indagou Giba passando marcha no carro.
--- Ribeira! Quer dizer: Rua do Motor. Na praia. Casas muitas destruídas. Uma catástrofe. – reclamou Armando Viana ao motorista.
--- Pensei que fosse ao Carrasco. – sorriu o homem meio sem graça.
--- Que tem o Carrasco? – indagou Armando pego de surpresa.
--- A chuva. Casas alagadas. Muita lama. O povo deixando suas habitações. Na parte baixa do bairro não tem jeito. É na Baixa da Coruja. Casa desabada. É um vexame total. – declarou meio angustiado o motorista.  
E o veículo rumou para a região da Rua do Motor, ficando na parte de cima onde passava a linha de bonde. O tempo era escuro por demais, com nuvens carregadas vindas do Oceano trazendo mais inquietação para os febris moradores. Quando o carro passou em frente ao Hospital Geral do bairro, o fotógrafo Canindé logo observou uma porção de gente a subir por uma rampa conduzindo pessoas desmaiadas e feridas totalmente molhadas. Algumas meninas quase nuas, vestindo apenas calcinhas e blusas, vinham chorando em desespero a percorrer a rampa. Naquele ponto, certamente devia haver uns degraus para o povo subir  descer para a rua de baixo. Canindé flagrou o pessoal a gritar por pressa de outros. Essas pessoas eram todas esmolambadas por causa de seu estado frente a chuva e por não ter muito o que vestir. Mulheres viviam de lavar roupa nas cacimbas ao largo de um terreno desocupado na beira-mar. Era o seu destino a fazer costumeiramente essas obrigações. Naquela hora, porém, ninguém estava a lavar roupas dos ricos, pois apenas o que restava era socorrer os parentes e amigos da mesma rua. Canindé fotografou o enorme grupo de pessoas de dentro do carro sem nem pedir a Giba para estacionar por uns instantes. A rua  de cima por onde Giba trafegava era uma ladeira. Ao lado tinha um corrimão de cimento por onde as pessoas poderiam ver o oceano em dias normais. Naquela manhã, a chuva caudalosa não deixava espaço para se ver coisa alguma. As águas corriam em enxurrada contínua pela rua decaída. O  repórter Armando pediu ao motorista uma parada, pois de onde estava ele podia divisar algo mais abaixo. O inverno era sem trégua e mesmo assim Armando e Canindé logo desceram do veículo. Armando colhia as impressões deixadas pelo povo sofrido onde cada qual buscava socorro de qualquer modo. Um padre deixou-se notar por entre a população da Rua do Motor a retirar os escombros caídos com vertiginosa pressa. Casas paupérrimas desciam pelo barranco deixando os seus moradores sem nada para socorrer. Era a desordem total entre destroços de casebres destruídos. Gritos e mais gritos. Era quando se encontrava o corpo de um menino ou de uma anciã já mortos pela correnteza desaguando sobre todos os pobres moradores. Os bombeiros procuravam pessoas perdidas por entre os escombros e a cada qual resgatada vinha o pranto de quem sofria. Carros não podiam mais transitar pela rua. Sua largura não havia de permitir a passagem de qualquer veículo. E  mesmo assim ninguém estava a se importar com esse tipo de socorro. O povo exausto procurava mesmo era encontrar os parentes perdidos no caudaloso rio de lama descendo como um monstro secular a lamber as suas presas para poder tragar.
--- Meu filho!!! Meu filho!!! Meu filho!!! Ele está aqui!!! – gritava a mulher possessa.
A cada pessoa sem vida encontrada nos escombros feitos de madeira e barro estava o padre para dar a estrema unção ao seu espírito o confortar a família enlutada. Já cansado de tanta procura, mesmo assim o sacerdote não desistia em prosseguir a encontrar gente.

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