quarta-feira, 17 de agosto de 2011

VENUS ESCARLATE - 24 -

- Praça Augusto Severo -
Na tarde de um dia qualquer, Glauco estava a conversar com dois amigos, tendo por trás o Colégio Salesiano e a ponte (velha) de passagem entre os bairros da Ribeira e da Cidade Alta. A praça era de fato um exuberante logradouro com os bancos feitos nas calçadas iguais nunca d’antes vistos ao longo do imenso tempo. E os homens discorriam admirados com a augusta pracinha e nem sequer ao menos pensavam em outra conversa. Em instantes, Glauco relatou o seguinte fato:
--- Um cego, certa vez me disse que tudo isso seria modificado. – relatou o homem pensativo.
--- Isso o que? – quis saber um dos três.
--- Isso. Toda a praça. Ele declarou ter visão do futuro. E por certo, falou em um futuro bem distante, longe até mais. – reportou Glauco com certo remorso.
--- É besteira. Tudo tolice. Eu nem me importo. Hoje é hoje. Amanhã somente Deus é quem sabe. – e cuspiu um chumaço de fumo o homem que conversava com Glauco.
--- Mas cego vê! – respondeu o terceiro homem com voz grossa até demais.
--- Vê a puta que pariu ele! Eu não acredito nessa bosta de antever o futuro que nem sei! – relatou o segundo homem bravo demais por conta do caso.
--- É porque você não sabe! Mas esse cego já disse muita coisa que aconteceu de verdade! – falou ao seu modo o doutor Glauco.
--- E ele falou de quem ia tirar na loteria, falou?  - perguntou o segundo homem não crente ao doutor Glauco meio cabisbaixo.
--- Disso eu não sei. Mas ele falou de um crime que seria cometido por uma mulher contra duas outras moças em uma casa, em baixo de um cajueiro, na praia. Ele falou muito antes do fato acontecer. – relatou Glauco se erguendo no assunto.
--- E aconteceu esse caso? – perguntou o homem descrente.
--- Aconteceu, sim. E a mulher está presa! – relatou com ênfase o doutor Glauco.
--- Eu ouvi dizer que esse cego de nascença era o cão. – narrou por sua vez o outro homem.
E o descrente caiu na risada com o argumento apresentado por seu amigo de voz pesada.
--- Eu não sei se era o cão ou não. Porem tudo o que ele disse, aconteceu! – fez ver Glauco.
--- Então você, que é muito amigo dele, pergunte o bicho de amanhã. Pergunte! – disse mais o descrente com certa raiva.
--- Eu perguntaria a ele, sim. Mas faz tempo que eu não o vejo! – falou Glauco olhando a ponte
---Diz nada Glauco. Ele só tem conversa. – expôs o homem descrente.
--- Pois eu ouvi dizer ter o cego dito que a Guerra terminaria em 1945. Como terminou e que Hitler morria como morreu. – falou o homem da voz grossa para o seu amigo.
--- Besteira! Tudo é besteira! Ora a praça! Essa nunca vai se quebrar. Nem de velha! Quanto mais de nova! – descreveu sorrindo o homem agnóstico.
--- Veja bem esse negócio. Esse cego disse certa vez que o cinema Politheama ia fechar as portas aqui no bairro da Ribeira. E fechou. Ele disse também que o cine Royal ia se acabar. E se acabou. E disse que o mercado da Cidade ia ser destruído por um imenso fogo. – expôs Glauco entusiasmado.
--- E foi destruído, foi? – inquiriu alegre o homem descrente.
--- Isso agora eu não sei. Eu estou a esperar. – narrou Glauco amedrontado.
--- É o cão. Ele é o cão. É o bicho cego que não precisa de olhos para enxergar! – falou devagar o homem da fala grossa.
--- E mais: ele estava em um café na Cidade, quando um bonde saiu com destino ao Tirol. E ele disse:
--- Vai pegar fogo! – disse o cego de nascença.
--- E se voltou e saiu! – relatou Glauco com entusiasmo.
--- Besteira! Pura besteira! Eu quero ver se ele acerta no bicho. – gargalhou o agnóstico.
--- Mas o bonde pegou fogo na viagem para o Tirol! – relatou Glauco sem queixas com os olhos bem abertos e cheios de vida.
E a conversa prosseguiu por mais algum tempo com Glauco afirmando tudo o que o cego havia dito e o agnóstico sempre a não acreditar em nada. Em contra partida o homem da fala grossa apenas dizia:
--- “É o cão! Ele é o cão!”. - o homem da voz grossa falava.
Um apito soou. Era o trem. O trem de ferro. Ele chegava com bastante atraso, vindo do interior trazendo gente e animais. O povo cansado de tanta demora desceu dos vagões e caminhou sem saber ao certo para um lado e para o outro, talvez igual aos desajeitados animais tangedores, assim como o gado cheio de dúvida berrando sozinho para o inclemente sol.
Pouco tempo depois Glauco pediu licença aos dois companheiros e saiu quase correndo para a sua repartição onde estava a dar expediente. Ele adentrou pela porta principal e a sua noiva, Racilva o viu, e nada arrazoou. Quando Glauco entrou em seu gabinete de trabalho ela apenas disse ao homem:
--- Walquiria telefonou para você. – reportou Racilva em tom baixo.
--- Telefonou? O que disse? – indagou preocupado o homem.
--- Nada. Apenas perguntou por você. E eu disse não estar. E então nós ficamos a conversar por alguns sobre revistas da moda. – relatou Racilva a Glauco.
--- Ela disse se ia? – perguntou Glauco querendo se referir a Fazenda Maxixe.
--- Não. Apenas perguntou por você e nada mais. – discorreu Racilva apanhado um papel de máquina.
Nesse ponto, Glauco pressentiu algo de anormal em vista. E apenas pensou no seu pai Arthur Rodrigues. O caso de Corina não chegara ao fim tão depressa e imediato. Glauco apenas pensava sem falar, nem mesmo com a sua prometida.
--- “Corra o campo” – palavra de Arthur.
E Glauco ouviu e muito bem. Ele sabia do pai mandar o vaqueiro correr o campo. Isso, em palavras simples queria dizer:
--- Mate o homem (que fez isso) – queria dizer Arthur, com certeza.
E o cangaceiro, de imediato, obedeceu à ordem do coronel Arthur. Podia ser em um dia, dois, ou muito mais. Talvez um mês. Quem sabe: três. O capanga do coronel Arthur teria de ir e voltar para receber novas ordens. E quem sacrificou Corina e o seu filho era a mando de um fazendeiro da região, João Duarte, homem rígido como um touro. Porém, João Duarte sempre procurou Corina e, quando isso ocorria levava a porta na cara. A mulher era fiel ao coronel e não queria negocio com outra gente. Abusado da vida, João Duarte mandou três capangas dar uma surra (matar) em Corina e mais quem tivesse na casa. O capanga de Duarte era Manoel Bento, conhecido por Mijão. Ele e dois capangas fizeram “justiça” a mando de João Duarte, quando acabar fugiram de mata adentro. Toda essa história o coronel colheu de outro capanga morador da fazenda, conhecido por Chico Gregório. Ele – Chico Gregório – sabia de toda a estória desde quando o coronel fez “arte” com a mocinha de 15 anos. E sabia muito bem das investidas dadas por João Duarte na casa de Corina, como também sabia ter o homem um capanga vivedor conhecido por Mijão, na verdade Manoel Bento. E Chico Gregório teve mesmo o tempo de ouvir de Manoel Mijão.
--- Vamos embora! – disse Manoel Mijão aos outros dois capangas na saída do Mercado da Serra Grande.
E foi desse modo ter sabido o coronel detalhes do “sacrifício” de Corina e do seu filho – e do coronel Arthur – o rapaz Fortunato, criado da Fazenda Maxixe desde criança. A ordem do coronel foi seguida a tento com a cabroagem se metendo mato a dentro a procura de Manoel Mijão e dos outros capangas. Embora calado, Glauco Rodrigues sabia desde cedo quando ainda tinha estado na tarde do domingo passado na Fazenda Maxixe os detalhes do crime e a ordem dada pelo coronel. E se os capangas não conseguissem o intento ou tivessem de ser  trucidados, a guerra não parava então. Outros capangas tomavam a vez dos defuntos. Essa era a ordem dada por palavra. E então, outros desordeiros capangas tinham a incumbência de trucidar também o chefe, João Duarte. Essa era a sina do sertão.
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